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Mulheres de flores e de aço.

Semana Santa tinha cheiro de manjericão e arruda. O roxo nos altares cobria as imagens. Uma tristeza superior sobrepunha-se às costumeiras. A banda municipal entoava marcha fúnebre, enquanto a procissão arrastava-se em longa e prolongada tristeza. Sofríamos por tudo. Pelo real, pelo imaginário. Chorávamos por todas as causas. Coletivas e particulares. Catarse pública, sem necessidade de explicações. Choros calados, represados ao longo do ano. Sofrimentos escusos, secretos, vergonhosos. A agonia do crucificado justificava qualquer forma de lamento. 
Eu mesma já chorei muito na procissão do encontro, aquele momento dramático em que a Virgem das Dores depara com o filho e seu algoz, por razões que tenho vergonha de contar, mas conto.
Enquanto a multidão chorava pelas razões religiosas que aquele encontro sugeria, eu soluçava era por meu amor não correspondido.
É quase uma blasfêmia eu confessar isso, mas essa era a verdade. Queria morrer de tanta culpa. Ao invés de pensar no sofrimento da mãe de Deus e de contemplar misticamente os últimos passos de Cristo na Terra, eu ficava era remoendo o desprezo do Zé Raimundo. 
A espada que transpassava o coração da Virgem Maria também feria o meu. Por razões diferente,  mas feria. Também eu tinha lágrimas de sangue rolando dentro de mim.
(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.15,16).

Do pó ao pó.



"Um belo dia nascemos e, depois disso, seremos como se jamais tivéssemos sido! É fumaça a respiração de nossos narizes, e nosso pensamento, uma centelha que salta do bater de nosso coração!
Extinta ela, nosso corpo se tornará pó, e o nosso espírito se dissipará como um vapor inconsistente!"
(Sabedoria 2, 2-3)  

💃🎉


Que tudo aquilo
que realmente for ruim,
vire confete
para enfeitar o nosso 
CARNAVAL. 

Tempo de esperas.


A leveza é dom. Aprecio os que sabem viver no pouco, os que viajam com poucas malas e os que descobriram que, ao contrário do que pensamos, as coisas não nos deixam mais ricos apenas mais pesados.
Infeliz é aquele que se identifica com o que tem. Aquele que não sabe diferenciar a felicidade das realidades materiais. Aquele que confunde a felicidade com a alegria. (MELO, Pe. Fábio De. Tempo de esperas,  2015, p. 92).

Mulheres de aço e de flores.


O encanto que sobrevive no amor só pode durar enquanto se estenderem os segredos que sacralizam a relação. É sacral, exige reverência. E por isso é necessário retirar as sandálias dos pés,  pisar com leveza, olhar com cuidado. O amor é amigo do silêncio. Sobrevive no querer dizer, na tentativa frustrada de verbalizar o que é a crença da alma, o sustento do espírito. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.129).

Tempo de esperas.


Já corri demais nessa vida. O tempo da pressa já se foi. E de toda essa pressa muito pouco me sobrou. Mas não quero as sobras. Resolvi recolher alegrias nos meus cestos imaginários. É melhor assim. Restos não me realizam. Restos de dor, restos de amor, restos de felicidade. Não quero. (MELO, Pe. Fábio De. Tempo de esperas, 2015, p.130).

Feita para o sacrifício I.


Os desatinos do corpo ainda persistem. O tempo não tem o poder de acorrentar a libido, mas apenas aconchega o desejo em outras modalidades de amor. A dissimulação  inconsciente resguarda a intenção. A caridade é sexo em praça pública. É não há problema algum justificar assim o amor que nutro pelos miseráveis. É gozo recolher no leito o que antes estava no relento. É carícia nos seios, mas que recebo na alma. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.77).

Avesso III.


Experimento o silêncio de Deus e só assim me convenço de sua existência. Acho absurda essa conversa de que abriu mares, derrubou muralhas, fez chover pães, naufragou exércitos. É por eu crer assim que padre Edvaldo esparramou pelos quatro cantos da cidade que sou ateia. Deixo que pensem.
(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.70).

Antiguidades IV.

Meu endereço é o mesmo desde a época do meu nascimento. Orgulho-me dessa estabilidade. Isso facilita a vida dos canteiros. Nem precisam conferir o local a ser entregue a correspondência. Meu nome é meu endereço. Nele, a vida está à disposição. Pode ser conferida investigada, porque meu destino é certo, imutável. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.64).

😊


Não perca a leveza carregue pesos que não te pertence.

Avesso II.


Em dias de calor sinto ainda mais os desconfortos da idade.  O tempo avança os territórios da felicidade, transmuda a paisagem, reconfigura os espaços, descolore a tela.
Vejo da minha janela a constante atuação da ferrugem sobre as estruturas que sustentam os meus  significados. É a vida de desfazendo aos poucos, em grãos, centímetros, partículas miúdas, mas constantemente. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.69).

Antiguidades III.

Enquanto isso, eu vou me entregando ao remanso do meu rio imaginário. Imagino suas margens. Uma gente feliz observando-o; redes lançadas, confiantes da riqueza que as águas ocultam. Poetas extasiados, dele extraindo palavras. Pescadores extraindo peixes, rindo dos poetas. Afluentes chegando, ministrando-se em mim, tornando-me outra, emprestando-me forças para que eu não me acabe antes de chegar ao mar. Se no percurso me barram, fico profunda. Assim eu vou. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.64).

Tempo de esperas

Ontem mesmo descobri uma contradição intrigante que faz parte de minha vida. Argus é um cão que amo muito. É um grande companheiro que tenho em casa. Argus não é um cão bravo que possa me servir como vigia. Também não possui pedigree para que possa ser exposto e premiado em concursos de cães. Argus não é bravo, nem belo. Cheguei à conclusão de que Argus é um inútil para mim. Não me serve para nada, e, no entanto, eu não consigo imaginar minha vida sem ele. Há coisas que nos são inúteis, mas mesmo assim nos são indispensáveis. Já pensou nisso? (MELO, Pe. Fábio De. Tempo de esperas, 2015, p.42, 43).

Mulheres de aço e de flores.

A noite com suas demoras parecia despencar as estrelas sobre o teto do meu abrigo. A dor tinha cheiro de hortelã. Não sei a razão, tristeza nem sempre tem razão. Apenas dói com seus cheiros estranhos.
As dores da infância tinham cheiro de dama-da-noite. A pequena planta ficava beirando a porta da cozinha, A mesma porta sempre entreaberta para que meu pai pudesse entrar em casa depois de suas aventuras, quando a madrugada já era a dona do mundo. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.88).

A ateia.

Eu queria acreditar que essa vela acessa fosse capaz  de estabelecer uma ponte entre a minha  necessidade e a benevolência de Deus, mas não posso. Olho para essa cera perdendo a consistência  e a única certeza que me ocorre é a de que o Marcelino do mercadinho está tendo muito lucro com a fragilidade do mulherio. Maços e maços de velas são queimados todos os dias nos silêncios dos desesperos. As causas são muitas. É marido que não volta, ferida  que não cura, emprego que não chega, plantação que não vinga. As velas nascem das precariedades. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.55).


Simplicidade III.

Recordo-me. A jabuticabeira florida era epifania de uma felicidade de época. Alegrias com cores de novembro. Chuvas torrenciais que nos permitiam tardes de prazeres delicados. Observar a metamorfose das flores em frutos era satisfação sem preço. A natureza costurada de regras consumava diante de nossos olhos o ditado bíblico que diz que debaixo do céu há um tempo para cada coisa. Era o tempo alinhavando os destinos das floradas, enquanto no silêncio do coração uma primavera fora de hora insistia em lançar pequenos brotos. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.34,35).

👏

Que a gente saiba AGRADECER o pouco para que possamos merecer o MUITO...

Simplicidade II.

Nunca vi uma mulher mais resignada que minha mãe. A sua labuta não tinha tréguas. O ofício de ser mulher era aprendido e ensinado nas pequenas coisas. Broa de fubá com amendoim era sua especialidade. - Forno é lugar por onde a gente prende o marido! - dizia. Eu levei tempo para entender, mas os sabores são os laços que garantem a conjugação do amor eterno. Não há amor que resista a um arroz requentado. Coisa mais triste é ver pingar a água no arroz encaroçado na panela fria. O bom do amor é sentir o cheiro do alho no óleo quente, o barulhinho do arroz refogando, dourando junto da cebola moída, só pra dar gosto. Doura o arroz, dura o amor. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.33, 34).

O redentor I.

O trajeto foi curto. Quase dois quarteirões nos separavam da sorveteria. Pareceu-me muito mais. O amor tem o poder de prolongar as distâncias. Os passos perdem a pressa. Chegar não é mais importante. O encanto está no ir. Um ir eterno, sem destino, sem tréguas. Um chegar que não chega nunca. E foi na direção desse não chegar que Estevão chegou definitivamente em minha vida. Após o sorvete ele disse que não saberia voltar para casa sem a certeza de um reencontro. Eu acreditei. Por um instante apaguei da memória a dureza das palavras que diziam que eu era insuportável, e que ninguém gostava de mim. O amor faz esquecer as ofensas. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.46, 47).

Creditos: euteamohoje

Antiguidades II.

Ainda prefiro os casarões de assoalhos com suas paredes altas e seus interiores naturalmente  refrigerados aos apartamentos modernos com suas refrigerações artificiais. A vida moderna e suas transições. O que é de hoje dura pouco. Respiro curto. vida breve, quase um rastro de passagem; um susto.
Antes, a vida prolongada, a demora salutar que nos permitia o costume. A adequação aos poucos e a completa identificação mais tarde. As coisas eram mais velhas que as pessoas. Hoje, não. A idade das coisas não prevalece sobre os humanos. Tudo acabou de chegar. E, muito em breve, vai partir. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.63).

Creditos: jpellizzer

De aço e de flores I.

A arquitetura da minha alma é barroca. Sou fraca, sou forte, sou luz e sou sombra. Sou de aço, sou de flores e foi Elviro que me desenhou assim. Niemeyer desenhou Brasília. Elviro desenhou a mim. O grande problema é que ele me fez de lápis. Tenho medo de que, tomado por um gesto de fúria ele me apague de vez. A borracha ele tem nas mãos, e meus riscos são frágeis. Sou de grafite, sou de barro. Sou bonita, sou marmota. Sou de lata, sou de ouro, sou catedral, sou capelinha. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.159,160).

Memórias I.


Eu quero é o alento de uma noite fria e cobertor vindo de Guaratinguetá. A viagem a Aparecida, o cumprimento do voto; a missa às seis horas da manhã, a vela que tinha o tamanho do corpo; o sofrimento da sala de milagres e depois o prazer. Atravessar a passarela como se desafiássemos o maior perigo existente no mundo até chegar ao carrinho que vendia o picolé de duas cores. Enorme; ícone que representava para o meu coração o mesmo que a imagenzinha negra representava para o meu pai. Eu só não podia era confessar esse absurdo. Caso contrário levaria um tapa bem dado na boca, e então não mais saborearia a minha devoção.(MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.116).



Creditos: Elo7 e august.ro

Avesso I.


Os ipês com sua coloração rosada já anunciam mudanças. A vida não sabe esperar. Olivério Rosa vive a vida com a mesma regra dos ipês. Desafia todos os estatututos do bom senso.
Florescer no inverno é coisa de quem armazena diferenças estranhas. Rosa é um homem memoravél. Tivesse eu uma ousadia sobrada da juventude e já lhe abriria as portas de minha casa para que entrasse com  suas duas trouxas de roupas e seu violão, colado ao peito. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.69,70).

Só por hoje...


Deixe ir embora tudo o que torna a vida pesada. Abra espaço para o novo, para as oportunidades e se dê a chance de ser feliz todos os dias.   (Alexsandra Zulpo)

Creditos: MY MODERN MET

Antiguidades I.

A solidão me assusta. O meu lugar é minha companhia. Um romance antigo, uma releitura da juventude, o amadurecimento dos personagens: tudo é matéria que ajuda a preencher as minhas horas. Os grifos das leituras passadas demonstram o quanto a emoção mudou de foco. Os grifos da primeira leitura, dos tempos quando o corpo adolescia, já não despertam mais minha atenção. Não há surpresa naquelas frases. A velha de hoje não quer mais se ocupar de emoções pueris. Os grifos de agora são mais raros. A quantidade é menor. Perda de sensibilidade? Não. Apenas um jeito mais calmo de passear pelas frases. Quando a maturidade chega, com ela vem a dificuldade nas surpresas. (MELO, Pe. Fábio De. Mulheres de aço e de flores, 2015, p.65).

Creditos: Book Porn

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ORFANDADES - O destino das ausências.

É um livro que tem uma narrativa envolvente, Pe. Fábio com seu olhar poético sobre as ausências humanas, conta histórias de personagens e lugares atingidos pelos misteriosos territórios da solidão e do desamparo existencial.

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